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Entre redes e desafios: a complexa engrenagem da regulação em saúde no estado de São Paulo

No segundo período do II Seminário Internacional de Regulação em Saúde, promovido pela Faculdade de Saúde Pública da Universidade de São Paulo (USP), especialistas e gestores públicos aprofundaram as discussões sobre a arquitetura da regulação em saúde no estado de São Paulo. Com ênfase na experiência da Central de Regulação da Oferta de Serviços de Saúde (CROSS), o encontro examinou avanços, limitações e caminhos possíveis para aprimorar a equidade, a qualidade e a eficiência dos serviços regulados.

Sandro Hilário, coordenador da CROSS, traçou um panorama da evolução histórica da regulação no estado. A trajetória teve início ainda na década de 1940, com o Serviço de Atendimento de Urgência (SANDU), e passou por marcos como a criação do Projeto Resgate, no contexto de grandes tragédias urbanas, como os incêndios dos edifícios Andraus e Joelma. Esses eventos impulsionaram a construção de uma estrutura mais robusta de resposta a emergências, que culminou na consolidação da CROSS em 2010.

Atualmente, a CROSS centraliza a regulação de leitos, exames e procedimentos de média e alta complexidade, conectando centenas de unidades de saúde em todo o estado. A operação envolve mais de 330 profissionais e é sustentada pelo Sistema Informatizado de Regulação do Estado de São Paulo (SIRESP), que organiza e acompanha cerca de 1.800 solicitações por dia. Para Hilário, o volume crescente de casos é reflexo de uma demanda em expansão e evidencia a necessidade de atualização constante de processos e tecnologias.

Contratualização e planejamento: os limites da eficiência

A gestão por contratos com Organizações Sociais de Saúde (OS) também foi tema de destaque. Marcela Pegulo, coordenadora da área responsável na Secretaria de Estado da Saúde, apresentou dados sobre os contratos firmados com 27 OS que, atualmente, gerenciam 134 unidades de saúde — incluindo hospitais, ambulatórios de especialidades e a própria CROSS. Ela defendeu que o modelo contribui para a ampliação da cobertura e a melhoria da qualidade dos serviços, mas exige atenção contínua à adequação entre oferta e demanda.

Um dos desafios recorrentes é a defasagem nos perfis assistenciais das unidades. Muitos contratos foram firmados com base em diagnósticos superados, sem refletir as necessidades atuais da população. Para enfrentar esse descompasso, a Secretaria pretende adotar o sistema DRG (Grupos de Diagnósticos Relacionados), que permite análise mais precisa de custos e da complexidade dos atendimentos. A expectativa é que a mudança fortaleça o planejamento orçamentário e atenda às exigências dos órgãos de controle.

Regulação descentralizada e pactuação regional

A articulação entre a regulação centralizada e as realidades regionais também foi objeto de debate. Representando o COSEMS-SP, Márcia Tudboni reforçou que a regulação só será efetiva se respeitar as especificidades territoriais. Para ela, descentralizar não significa abrir mão da coordenação estadual, mas fortalecer a pactuação entre os entes para garantir decisões mais aderentes às demandas locais.

Hilário compartilhou essa perspectiva, destacando que a CROSS atua como regulador técnico-operacional, enquanto a formulação das políticas regulatórias deve vir das regiões. A superação de resistências iniciais à centralização da CROSS, segundo ele, só foi possível com o fortalecimento dos espaços de pactuação e o avanço na integração dos sistemas de informação.

Inovação tecnológica e melhoria da resposta regulatória

A atualização tecnológica foi apresentada como eixo estruturante da regulação contemporânea. A modernização do SIRESP, com desenvolvimento de painéis interativos, promete maior agilidade na consulta a dados de fila e ocupação de leitos. Essas ferramentas também reforçam a transparência da operação regulatória, ampliando a capacidade de resposta em situações críticas.

Outro avanço está na adoção de metodologias de gestão inspiradas no modelo Lean, voltadas à eficiência dos fluxos operacionais. A redução dos tempos de resposta da CROSS, mesmo diante do aumento da demanda, tem sido atribuída à adoção de protocolos clínicos, treinamentos periódicos das equipes e uso sistemático de dados para subsidiar decisões.

Fiscalização, metas e a sustentabilidade do modelo OS

Embora o modelo de gestão por OS receba críticas, Pegulo defendeu sua sustentabilidade diante das limitações estruturais do setor público. Segundo ela, a secretaria mantém mecanismos rigorosos de controle, como auditorias frequentes, acompanhamento de indicadores de produção e qualidade, e relatórios de desempenho trimestrais. OS que não cumprem metas estão sujeitas a penalidades contratuais.

Ainda assim, ela reconhece a necessidade de qualificar o planejamento. “Não basta ter um contrato bem gerido. É preciso garantir que o projeto assistencial da unidade esteja alinhado com a rede e com as características epidemiológicas da região”, afirmou. A sobrecarga de alguns serviços e os gargalos na regulação são, em parte, resultado de desalinhamentos ainda presentes.

Governança e perspectivas para o futuro da regulação

O seminário também abordou a proposta de criação de uma subsecretaria estadual de assistência, reunindo as coordenadorias de regulação e atenção. A medida busca ampliar a articulação entre planejamento, financiamento e execução das políticas públicas de saúde.

Para os debatedores, a governança multinível é um dos principais caminhos para avançar em direção a uma regulação mais justa e efetiva. A construção de uma agenda compartilhada entre gestores estaduais, municipais e a sociedade civil é vista como condição para garantir o direito à saúde com qualidade, transparência e participação.

A experiência apresentada reafirma a regulação como um dos pilares estratégicos do SUS. Mais do que um mecanismo de controle de fluxos, trata-se de uma função essencial para o equilíbrio entre oferta e demanda, sobretudo em contextos de escassez de recursos e crescente complexidade dos sistemas de saúde. Manter a regulação atualizada, adaptada às realidades locais e sustentada por evidências, é um desafio permanente — e uma tarefa coletiva.

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