Durante o II Seminário Internacional de Regulação em Saúde, promovido pela Faculdade de Saúde Pública da USP, especialistas nacionais e internacionais se reuniram para discutir os limites e possibilidades da regulação em sistemas de saúde. O evento abordou desde a governança de redes até os impactos de novas tecnologias e da crise ambiental sobre os modelos regulatórios.
Em um sistema público como o brasileiro, marcado por desigualdades regionais e desafios de coordenação entre esferas de governo, a regulação foi apresentada como eixo estruturante para garantir o acesso universal e a qualidade da atenção à saúde. Sua função vai além do controle de fluxos: trata-se de uma estratégia para organizar o cuidado, racionalizar recursos e responder com equidade às necessidades da população.
Redes complexas e necessidade de pactuação territorial
Entre os principais desafios discutidos, destacou-se a complexidade das redes de atenção à saúde. Em um cenário em que a oferta de serviços depende da cooperação entre diferentes níveis de gestão — federal, estadual e municipal —, a regulação precisa combinar diretrizes nacionais com adaptações às realidades locais. Isso implica fortalecer os espaços de pactuação interfederativa e garantir instrumentos que orientem a descentralização com padrões mínimos de qualidade.
O modelo brasileiro, descentralizado por definição, exige coordenação permanente. A regulação aparece como mediadora entre o planejamento regional e a operacionalização da assistência, exigindo capacidades técnicas, transparência e compromisso político dos diferentes atores envolvidos. Nesse sentido, o seminário reforçou a urgência de atualizar instrumentos e processos para tornar a regulação mais responsiva às dinâmicas territoriais.
Tecnologia e inteligência artificial no centro do debate
A incorporação de tecnologias digitais e da inteligência artificial (IA) na saúde pública foi outro ponto de destaque. Soluções baseadas em algoritmos têm sido cada vez mais adotadas na regulação de acesso, monitoramento de leitos e definição de prioridades assistenciais. No entanto, os especialistas alertaram para os riscos associados à opacidade dos sistemas, à ampliação de desigualdades no acesso e à segurança dos dados sensíveis da população.
Para enfrentar esse cenário, a regulação deve se antecipar aos efeitos das inovações, construindo marcos normativos capazes de assegurar transparência, responsabilidade algorítmica e uso ético das tecnologias. O debate evidenciou a importância de incorporar a regulação tecnológica como eixo permanente da agenda regulatória do SUS.
Lições internacionais e a experiência de agências autônomas
O seminário também trouxe reflexões comparadas. Modelos adotados em países europeus, onde agências reguladoras independentes fiscalizam tanto o setor público quanto o privado, foram apresentados como referências relevantes. Essas agências operam com autonomia técnica e capacidade de regulação sistêmica, combinando fiscalização, avaliação de desempenho e garantia de acesso com equidade.
Esse arranjo contrasta com realidades como a brasileira, onde a regulação ainda é, em grande parte, subordinada às estruturas de gestão. Para os participantes, adaptar essas experiências às condições locais pode fortalecer a governança regulatória e ampliar a capacidade de resposta dos sistemas públicos de saúde.
Regulação ambiental e o impacto das crises globais
A sustentabilidade ambiental dos sistemas de saúde foi tratada como tema emergente e transversal. Em um contexto de crise climática e esgotamento de recursos, decisões regulatórias precisam incorporar critérios de sustentabilidade. Desde a gestão de resíduos até a organização de fluxos assistenciais e aquisições públicas, é necessário considerar o impacto ambiental das decisões de saúde.
Políticas regulatórias que integram indicadores de sustentabilidade são vistas como estratégicas para alinhar o setor saúde aos compromissos globais de enfrentamento da emergência climática e para reduzir a pegada ambiental dos serviços públicos.
Pesquisa, cooperação internacional e evidência como base regulatória
Outro consenso foi a importância da produção científica como base para decisões regulatórias. A integração entre instituições de pesquisa, universidades e gestores públicos pode qualificar o desenvolvimento de normas e indicadores, além de apoiar a formulação de políticas mais coerentes com os desafios reais da gestão.
Nesse sentido, o seminário reforçou o papel da cooperação internacional e das redes interinstitucionais como mecanismos de intercâmbio técnico, aprendizagem mútua e produção colaborativa de soluções regulatórias. A articulação entre saber técnico, conhecimento acadêmico e ação política é considerada condição para construir uma regulação mais adaptada às transformações sociais, econômicas e tecnológicas em curso.
Equidade e justiça distributiva no centro da agenda regulatória
Com ênfase na realidade brasileira, os participantes destacaram que regular é também um ato político de enfrentamento das desigualdades. Em um país marcado por assimetrias profundas no acesso e na qualidade dos serviços de saúde, a regulação deve ser pensada como instrumento de justiça distributiva, capaz de redistribuir recursos, reorganizar prioridades e garantir que os cuidados cheguem a quem mais precisa.
A adoção de novas metodologias de avaliação de tecnologias em saúde (ATS), ferramentas de monitoramento de desempenho e gestão por resultados são estratégias que podem contribuir para uma regulação mais efetiva e orientada por evidências. Mas, para isso, é necessário garantir transparência, participação social e accountability dos processos regulatórios.
Um campo dinâmico e em permanente construção
A regulação em saúde, como demonstrado ao longo do evento, é um campo em movimento, que precisa constantemente atualizar suas práticas, integrar novos saberes e responder às transformações do contexto. Não se trata apenas de um conjunto de regras, mas de uma estratégia complexa de governança, que envolve mediação de interesses, negociação de prioridades e compromisso com o direito à saúde.
O seminário reiterou que fortalecer a regulação é fortalecer o SUS. E isso exige uma atuação regulatória baseada em evidências, sensível às desigualdades, adaptada à complexidade das redes de cuidado e capaz de incorporar inovações com responsabilidade social.
O vídeo completo do evento está disponível abaixo: